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MITOS, VERDADES E A HISTÓRIA DA LÍNGUA DE SINAIS

INTRODUÇÃO
Quem se presta a fazer um curso de licenciatura hoje se depara com uma matéria que não esperava (aconteceu comigo no curso de filosofia), a Língua Brasileira de Sinais. Em 2005 o decreto 5.626 determinou que a LIBRAS fosse inserida no currículo como disciplina obrigatória nos cursos de formação de professores. Este é mais um passo dado no sentido da evolução do princípio da inclusão.

O objetivo desse texto é fazer um breve passeio (não muito breve) pelos mitos, verdades, histórias, falácias etc., acerca dos surdos e da Língua Brasileira de Sinais ao longo dos tempos. Veremos que, diferente do que se aprende em muitos cursos, nem todas as culturas excluíam os surdos e nem todos os filósofos achavam que surdos eram incapazes de aprender.
MITOS E VERDADES
Não obstante muitos costumem usar o termo “linguagem de sinais” o termo correto é “Língua de Sinais”. Nosso país utiliza a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), reconhecida como segunda língua oficial em todo território nacional de acordo com a Lei de LIBRAS 10.436/2002.

Ser surdo implica mais uma questão linguística do que apenas patológica. Vejamos, por exemplo, o que diz o Decreto 5626/2005 a esse respeito em seu artigo 2º:

“Considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage pelo mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. ”

É um equívoco chamar as pessoas com deficiência auditiva de surdos-mudos, pois surdo-mudo é o indivíduo que possui uma deficiência auditiva e outra no aparelho fonador (é meio óbvio, mas ainda tem gente que usa). Alguns surdos, por exemplo, possuem dificuldade para desenvolver a fala já que não escutam, porém, seu aparelho fonador é preservado, ou seja, ele teria a capacidade de falar, no entanto, devido à ausência de referências sonoras para emitir os sons tem mais dificuldade que as pessoas que ouvem. Por essa razão é de bom alvitre começarmos a pensar a partir de agora, para evitar equívocos, que o surdo possui uma cultura e identidade centrada em sua comunicação espaço visual.De acordo com o Decreto 5626/2005: 

“Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiogramas nas frequências de 500Hz, 1.000Hz e 3.000Hz”.

Um equívoco comum é achar que todo surdo sabe ler lábios. Alguns surdos desenvolvem essa habilidade devido a treinamentos por anos com fonoaudiólogos; assim como outros surdos que perderam a audição tardiamente também oferecem facilidade para desenvolver a leitura labial. Isso não significa que todos têm essa capacidade.

Outro erro é dizer que a língua de sinais é universal, pois não é. Existe o gestuno (língua de sinais internacional) que foi desenvolvida por causa da necessidade de comunicação entre surdos de diferentes nacionalidades, mas de uma forma geral cada país tem sua língua de sinais, inclusive, tem país que utiliza mais de uma.

Um dos enganos mais comuns (esse eu cometia frequentemente quando conversava com amigos sobre o assunto) é acreditar que a língua de sinais foi criada por ouvintes. Não foi. Assim como as línguas orais emergiram espontaneamente, naturalmente da necessidade de comunicação das pessoas surdas, portanto, não foi nem baseada na língua oral; as duas são totalmente independentes. A língua de sinais possui uma língua visual/gestual enquanto a oral uma oral/auditiva.

Diferente do que muitos pensam a Língua de Sinais possui a mesma capacidade expressiva que qualquer língua oral. Esse é, pelo menos, o que dizem os peritos e profissionais da área. Eu mesmo não tenho ideia de como trabalhariam com metáforas, mas acredito (questão de fé mesmo) que seja possível. Portanto, o entendimento de quem estuda o assunto é de que a Língua de Sinais não serve só para falar de coisas concretas, imediatas e simples. Ela é usada para falar de coisas abstratas e complexas, como política, linguística, filosofia, entre outras.

O interessante é que crianças aprendem línguas orais e língua de sinais de maneira muito semelhante (para não dizer igual). Crianças adquirem uma ou mais línguas simplesmente pela exposição a elas através da interação com outros falantes. A mesma coisa acontece com crianças surdas que, desde muito cedo, têm contato com surdos adultos e, através da interação com eles, adquirem Língua de Sinais.

Hoje existem pessoas especializadas em Língua de Sinais, um exemplo disso é o interprete de LIBRAS que é o profissional ouvinte fluente em LIBRAS e em Língua Portuguesa que realiza a tradução/interpretação simultânea LIBRAS/Português e português/LIBRAS.

HISTÓRIA DAS PESSOAS COM SURDEZ
Se o decreto 5626/2005 determinou que Libras fosse disciplina obrigatória nos cursos de licenciatura, hoje os surdos possuem uma língua reconhecida em todo território nacional graças a Lei de LIBRAS 10.436, em 2002, que garantiu muitos direitos das pessoas com surdez que desde a antiguidade sofriam com a discriminação o preconceito e a exclusão (veremos que nem toda sociedade os tratava desse jeito).

ANTIGUIDADE
Na maioria dos livros que contam a história dos surdos consta que na antiguidade não eram considerados humanos, não tinham por isso direito à vida. A surdez era considerada maldição dos deuses e por isso muitos surdos eram sacrificados. Não obstante essa informação, isso se verificava, sim, na maioria das culturas como China, Esparta e de forma quase que generalizada na Grécia. Mas no Egito, por exemplo, eles eram adorados. Os egípcios os tratavam como se fossem deuses, eram temidos e respeitados pela população, pois eram usados como intermediadores entre deuses e Faraós. Aristóteles achava que eles eram incapazes de desenvolver o pensamento por não possuírem linguagem inteligível. Isso pode ser justificado devido ao fato do filósofo utilizar o método peripatético (significa ambulante ou itinerante), pois se ensinava passeando, lendo ao ar livre etc. Outra coisa que merece ser comentada é que não é correto afirmar que a Grécia (toda) considerava surdos incapazes, a que Sócrates declarava que era aceitável que os surdos se comunicassem com as mãos e com o corpo. De modo que o entendimento de que os surdos não pensavam poderia até ser predominante, mas não era unânime.

IDADE MÉDIA
Na idade Média muitos surdos eram banidos da sociedade. A concepção de que os surdos eram incapazes e limitados prevalecia. Neste período os surdos não podiam se casar, não tinham direito a escolarização, não podiam frequentar os mesmos locais que os ouvintes, não tinham direito ao testamento, não possuíam acesso à religião, pois suas almas eram consideradas mortais. A partir da análise desse contexto a igreja iniciou uma tentativa de educar e doutrinar os surdos.  Os monges que haviam feito o voto de silêncio para não passar os conhecimentos do livro sagrado tornaram-se preceptores dos surdos. Não obstante, o interesse era religioso e econômico, e, seu foco era a oralização dos surdos (tentavam ensinar surdos a falar).

IDADE MODERNA
Na idade moderna os estudos sobre as pessoas com surdez tornaram-se mais disponíveis. Muitos estudiosos renomados passaram a investigar a surdez, no entanto, a maioria insistia na possibilidade de fazer com que os surdos falassem.

A primeira alusão ao surdo aprender por meio da Língua de Sinais ou da língua oral é encontrada em Bartolo della Marca d’Acona, escritor e advogado do século XIV. Neste mesmo período o médico e filósofo Girolamo Cardano (1501-1576), também declarou que a surdez não era impedimento para a razão e a instrução e que “era um crime não instruir um surdo”. Seu interesse era devido ao fato de seu filho ter nascido surdo.

Apesar dessas afirmações há uma corrente que acredita que o verdadeiro início da educação do surdo surgiu com o monge beneditino Pedro Ponce de León (1520-1584), que se dedicou a ensinar as crianças das famílias pobres. Ele ensinava a falar, ler, escrever e rezar. Alguns dos seus alunos, inclusive, aprenderam filosofia natural e astrologia.

O padre Juan Pablo Bonet (1579-1623), de acordo com Honora (2009), publicou em 1620, em Madrid, o tratado de ensino de surdos chamado: “Redação das Letras e Artes de Ensinar os Mudos a Falar”. Bonet acreditava que seria mais fácil para os surdos aprenderem a falar e ler se cada letra do alfabeto fosse substituída por uma forma visual.

No entanto, há relatos que demonstram que o monge Melchor de Yebra (1526-1586), 30 (trinta) anos antes da publicação de Bonet. Não há consenso, portanto, entre os pesquisadores sobre qual seria a época ou quem realmente criou o alfabeto manual. Um exemplo que torna patente essa dúvida é a existência do alfabeto bimanual (que utiliza as duas mãos para representa-lo) considerado uma das formas mais antigas e utilizada hoje pelo Reino Unido, Austrália, África do Sul, Nova Zelândia e algumas zonas do Canadá.

John Bulwer (1614-1684), foi o primeiro inglês a desenvolver e defender o método de comunicação entre ouvintes e surdos. Publicou o livro A Língua natural da mão e a arte da retórica manual, no qual defendia o uso do alfabeto manual, leitura labial e língua de sinais.

O inglês John Wallis (1616-1703) é considerado o fundador do oralismo na Inglaterra porque tentou ensinar surdos a falar, no entanto, abandonou essa teoria, passou a ensinar a língua de sinais e considerou que esta seria fundamental para a educação das pessoas com surdes.

Thomas Braidwood (1715-1806), leu o trabalho de John Wallis cerca de um século depois e passou a seguir seus princípios iniciais de oralização, pois ignorou o fato de Wallis ter abandonado essa tese e considerado a língua de sinais o melhor caminho (Ainda descubro o porquê). Braidwood fundou uma escola para surdos que se tornou referência na correção dos distúrbios da fala na Europa. Essa escola ficava em Edimburgo utilizava técnicas de leitura orofacial, alfabeto manual e pronuncia. Muitas escolas foram fundadas utilizando a técnica de Braidwood como base.

Já no final da Idade Moderna Charles Michael L’Epeé (1712-1789), considerado pai dos surdos, aprendeu língua de sinais diretamente com os surdos e considerou o que eles traziam de sua cultura e reconheceu que essa língua poderia expressar conceitos concretos e abstratos. Procurando sistematizar seus estudos, L’Epeé, passou a conversar com mendigos, que perambulavam pelas ruas de Paris. Seu método combinava a gramática da língua francesa e sinais trazidos por seus alunos, chamaram esse sistema de “sinais metódicos”. Foi L’Épeé que fundou a primeira escola pública de Paris, o Instituto Nacional para Surdos-mudos, em 1970, Considerado como um marco na história dos surdos. Passou a fazer demonstrações públicas com seus alunos para arrecadar dinheiro e mostrar que os surdos eram capazes de aprender. Fundou 21 escolas para surdos somente na França e em outras partes da Europa. Após a morte de L’Epeé, Jean Massieu tonou-se um grande professor e renomado instrutor dos surdos na época, mas foi afastado quando grandes opositores da língua de sinais.

Jean-Marc Itard (1775-1838), tornou-se médico residente do Instituto Nacional dos Surdos-Mudos de Paris e, tentando entender a causa da surdez para erradica-la passou a cometer todo tipo de atrocidade. Usava sanguessugas para perfurar as membranas timpânicas de alunos surdos, usava descargas elétricas nos ouvidos dos surdos, levava muitas vezes pessoas a morte quando perfurava membranas timpânicas e após 16 (dezesseis) anos de pesquisa concluiu que o surdo só poderia ser educado por meio de língua de sinais.

Thomas Gallaudet (1787-1851), interessou-se pela surdez após tentar estabelecer contato com sua vizinha, Alice Cogwell. Seu interesse aumentou cada vez mais e juntamente com outras pessoas tentou abrir uma escola pública para surdos nos Estados Unidos. Partiu para Europa para aprender o método utilizado por Braidwood (método oralista), porém, por interesse financeiro Braidwood não quis revelar seu método. Isso fez com que Gallaudet viajasse para França para conhecer o método utilizado por L’Épée, que utilizava língua de sinais para ensinar os surdos.  No Instituto Nacional de Surdos-Mudos ele realizou estágio, aprendeu língua de sinais e o sistema de sinais metódicos. Seu instrutor chamava-se Laurent Clerc (1785-1869), era um surdo educado no próprio Instituto, brilhante e reconhecido como um grande mestre na educação dos surdos.

Foi seguindo esses passos que fundaram a HarfordSchool. Em 1869 já haviam 30 escolas nos Estados Unidos. Em 1864, começou a funcionar a primeira faculdade para surdos, localizada em Washington (Nacional Deaf-Mute College, atualmente chamada de Gallaudet University, fundada por Edward Gallaudet, finlho de Thomas Gallaudet (gente fina). Até hoje é a única universidade do mundo de artes liberais para surdos que utiliza a língua de sinais como primeira língua.

Um grande defensor do oralismo foi o conhecido Alexander Graham Bell (1847- 1922), isso mesmo, o carinha que inventou o telefone (tentando inventar a cura para surdez, dizem). Ele acreditava que a língua de sinais era inferior a língua oral. Acreditava que o casamento entre surdos não deveria ocorrer por representar um perigo para sociedade (a mãe desse gênio da ciência era surda). Uma curiosidade é que a esposa dele Mabel Gardiner Hulbard (1857-1923), era surda, mas não gostava de estar na presença de outros surdos.

Nelson Rodrigues disse certa feita que “a grande desgraça da democracia é que ela traz à tona a força numérica dos idiotas”, isso pode ser confirmado se voltarmos ao ano de 1880 em Milão, quando aconteceu o II Congresso Mundial de Surdos-Mudos, promoveram uma votação democrática (onde havia apenas um surdo sem direito a voto) para decidir qual seria a melhor maneira de educar o surdo. A oralização venceu e o uso de sinais proibidos (de volta a antiguidade). Inronicamente e sem graça nenhuma poderíamos dizer que os surdos não foram ouvidos. O que prova que não precisa ser deficiente auditivo para não ter a capacidade de ouvir, basta se achar superior.

E NO BRASIL?
Lembra do Institutos de Surdos de Paris? Um ex-aluno surdo desse instituto, Hernest Huet (1858-1917), trouxe documentos importantes sobre a Língua Francesa de Sinais para o Brasil e solicitou ao Imperador Dom Pedro II um prédio para abrir o Instituto de Surdos-Mudos (ainda usavam esse termo) no Brasil. O Instituto Nacional de Educação dos Surdos foi fundado no Rio de Janeiro em 26 de setembro de 1857.

Huet deixou o Brasil em 1861 e foi para o México, onde fundou uma escola para surdos. Muitas lutas continuaram acontecendo até chegarmos a Lei de Libras e o Decreto citado no começo deste texto. A luta continua, apesar dos avanços. Hoje o Brasil adota a concepção bilíngue e prioriza o ensino do surdo por meio da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS.

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Pierre Logan: Formando em direito com inclinações filosóficas e licenciando em filosofia. Foi líder da banda Estado Mental, gravou com esta banda o disco “A separação dos tempos” (2010). Atualmente, em sua carreira solo, lançou o disco Pierre Logan: Crônicas de um mundo moderno (2015), cuja proposta (rock filosófico) o deixou na vanguarda dos roqueiros mais promissores da nova leva da cena independente. Atualmente mora em São Paulo e também é colunista do jornal SP em notícias, publicou vários artigos sobre política e filosofia. Mais informações acesse o site oficial 



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